terça-feira, 6 de maio de 2014

O HORROR DE UM MATADOURO


Uma crônica do que um compartilhamento sem reflexão pode fazer


O grito é de dor! Sua carne ia sendo transportada por mãos hábeis, que sabem muito bem os golpes que deverão ser dados para que seu intento seja executado. Os grunhidos aos poucos vão se tornando cada vez mais altos. O palco do matadouro está instaurado. São poucos minutos que aquele ser tem ainda de vida. As pessoas arrastam seu couro pelas ruas sem asfalto. Sua carne é dilacerada. É possível verificar a dor sentida na pele. A face é arrastada no antipó e é desfigurada. Os olhos parecem saltados na órbita. Vê-se claramente o medo que transfigura no sangue de suas órbitas. Os sons emitidos agora são de desespero e frenéticos. Alguém daquele grupo ensandecido dá chutes, um outro dá pauladas. Alguém não aguenta a cena e pede para parar, mas há um veredicto posto e nenhuma forma de racionalidade cabe nesse momento. Uma multidão segue a cena, como a um filme em tela grande. Crianças, jovens, mulheres, homens. Aquele pedaço de carne é pendurado, jogado em uma vala. Um ciclista resolve passar em cima da cabeça, já toda machucada. Palavras inflamadas, gestos irreconhecíveis são direcionados àquele corpo que praticamente jaz no meio da rua. Seus olhos ainda piscam, sua língua ainda se mexe, quase não há mais som e sua cabeça ainda se move. Alguns se afastam. O corpo parece ter espasmos, contrações involuntárias, agonizando.
Chamam o corpo de bombeiros...
Você pensou em um porco ou boi sendo abatido? Não! O corpo estirado na rua tem um nome, uma história. O nome dela é Fabiane Maria de Jesus. Sim! É um ser humano! Ela foi espancada por dezenas de moradores de um bairro de Guarujá-SP. Foi justiçada depois que um boato gerado em uma página do facebook dizendo que uma mulher sequestrava crianças para rituais de magia negra. A foto do retrato falado foi ligada a Fabiane, que ao sair de casa foi cercada por várias pessoas acéfalas e começaram a agredi-la violentamente. Depois de todas as barbáries gravadas em vídeo, a jovem mulher, de 33 anos (ironicamente a idade de Cristo e com a alcunha Fabiane de Jesus) foi levada com vida para a UTI do município, mas não resistiu aos ferimentos.
Ela era mãe de duas crianças. Esposa, amiga, filha. Talvez nunca tivesse passado pela sua cabeça uma forma tão bestial de deixar esse mundo. Ela sofria distúrbios psicológicos. Ela? Doentio é a atitude insana da população revoltada sem senso nenhum. Em nome da justiça pelas próprias mãos não filtraram as informações repassadas, compartilhadas, curtidas.
Imagino que alguém, sem responsabilidade nenhuma, postou uma informação no site onde o retrato falado estava veiculado, dizendo que uma mulher, da sua rua, era muito parecida com a foto em questão. Quando você recebe algum tipo de ‘post’ de um amigo, de um conhecido, a tendência geral é curtir. Em poucos minutos, as pessoas vizinhas de Fabiane, que estavam logadas e ‘alertas’ com uma possível sequestradora de crianças na região, curtem, compartilham, comentam e aos poucos o furor coletivo e sentimento de justiça é insurgido. Alguém sugere a vingança. Outro compartilha, outro curte, outro comenta. E aí a ‘brilhante’ ideia de partir para a agressão. A tragédia está feita! Indivíduos, um bando, resolvem abater e com eles muitos seguem impensadamente. Mataram uma inocente! Matar quem quer que seja é um crime! Mas matar um inocente, alguém que sequer sabia o que estava acontecendo e o porquê estava sendo acusada é lamentável, lastimável, inaceitável.
Ao ver as imagens na TV, os depoimentos na internet, as pessoas comentando, fiquei com vontade de chorar. Não acreditei nessa sociedade que faz justiça dessa forma. As imagens revelaram pessoas perversas, sem humanismo. Não consegui chamar de seres humanos, pois humano era somente a Fabiane naquele local que lutava para não perder sua vida. O único ser humano naquele momento, morreu!
Pensei na palavra animais, mas há muito já não uso esse termo pois a associação só prejudica essa classe. Bestas! Talvez!
O jornalista G. L. Godkin, em 1893,  escreveu sobre os linchamentos de negros nos EUA, que tinham plateias e ampla cobertura dos jornais: “O homem é o único animal capaz de tirar prazer da tortura e morte de membros de sua própria espécie. Arriscamo-nos a afirmar que parte das pessoas num linchamento está lá como em uma briga de galo, para satisfação dos instintos mais baixos e degradantes da humanidade”.
E aí, envergonho-me de fazer parte dessa raça!

(Alde Maller – 06/05/2014)

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