Uma crônica do que um compartilhamento sem
reflexão pode fazer
O grito é de dor! Sua carne
ia sendo transportada por mãos hábeis, que sabem muito bem os golpes que
deverão ser dados para que seu intento seja executado. Os grunhidos aos poucos
vão se tornando cada vez mais altos. O palco do matadouro está instaurado. São
poucos minutos que aquele ser tem ainda de vida. As pessoas arrastam seu couro
pelas ruas sem asfalto. Sua carne é dilacerada. É possível verificar a dor
sentida na pele. A face é arrastada no antipó e é desfigurada. Os olhos parecem
saltados na órbita. Vê-se claramente o medo que transfigura no sangue de suas
órbitas. Os sons emitidos agora são de desespero e frenéticos. Alguém daquele
grupo ensandecido dá chutes, um outro dá pauladas. Alguém não aguenta a cena e
pede para parar, mas há um veredicto posto e nenhuma forma de racionalidade
cabe nesse momento. Uma multidão segue a cena, como a um filme em tela grande.
Crianças, jovens, mulheres, homens. Aquele pedaço de carne é pendurado, jogado
em uma vala. Um ciclista resolve passar em cima da cabeça, já toda machucada.
Palavras inflamadas, gestos irreconhecíveis são direcionados àquele corpo que
praticamente jaz no meio da rua. Seus olhos ainda piscam, sua língua ainda se
mexe, quase não há mais som e sua cabeça ainda se move. Alguns se afastam. O
corpo parece ter espasmos, contrações involuntárias, agonizando.
Chamam o corpo de
bombeiros...
Você pensou em um porco ou
boi sendo abatido? Não! O corpo estirado na rua tem um nome, uma história. O
nome dela é Fabiane Maria de Jesus. Sim! É um ser humano! Ela foi espancada por dezenas de moradores de um bairro de Guarujá-SP.
Foi justiçada depois que um boato gerado em uma página do facebook dizendo que uma
mulher sequestrava crianças para rituais de magia negra. A foto do retrato
falado foi ligada a Fabiane, que ao sair de casa foi cercada por várias pessoas
acéfalas e começaram a agredi-la violentamente. Depois de todas as barbáries
gravadas em vídeo, a jovem mulher, de 33 anos (ironicamente a idade de Cristo e
com a alcunha Fabiane de Jesus) foi levada com vida para a UTI do município,
mas não resistiu aos ferimentos.
Ela era mãe de
duas crianças. Esposa, amiga, filha. Talvez nunca tivesse passado pela sua
cabeça uma forma tão bestial de deixar esse mundo. Ela sofria distúrbios
psicológicos. Ela? Doentio é a atitude insana da população revoltada sem senso
nenhum. Em nome da justiça pelas próprias mãos não filtraram as informações
repassadas, compartilhadas, curtidas.
Imagino que
alguém, sem responsabilidade nenhuma, postou uma informação no site onde o
retrato falado estava veiculado, dizendo que uma mulher, da sua rua, era muito
parecida com a foto em questão. Quando você recebe algum tipo de ‘post’ de um
amigo, de um conhecido, a tendência geral é curtir. Em poucos minutos, as
pessoas vizinhas de Fabiane, que estavam logadas e ‘alertas’ com uma possível
sequestradora de crianças na região, curtem, compartilham, comentam e aos
poucos o furor coletivo e sentimento de justiça é insurgido. Alguém sugere a
vingança. Outro compartilha, outro curte, outro comenta. E aí a ‘brilhante’
ideia de partir para a agressão. A tragédia está feita! Indivíduos, um bando,
resolvem abater e com eles muitos seguem impensadamente. Mataram uma inocente!
Matar quem quer que seja é um crime! Mas matar um inocente, alguém que sequer
sabia o que estava acontecendo e o porquê estava sendo acusada é lamentável,
lastimável, inaceitável.
Ao ver as imagens
na TV, os depoimentos na internet, as pessoas comentando, fiquei com vontade de
chorar. Não acreditei nessa sociedade que faz justiça dessa forma. As imagens
revelaram pessoas perversas, sem humanismo. Não consegui chamar de seres
humanos, pois humano era somente a Fabiane naquele local que lutava para não
perder sua vida. O único ser humano naquele momento, morreu!
Pensei na
palavra animais, mas há muito já não uso esse termo pois a associação só
prejudica essa classe. Bestas! Talvez!
O jornalista G. L. Godkin,
em 1893, escreveu sobre os linchamentos
de negros nos EUA, que tinham plateias e ampla cobertura dos jornais: “O homem
é o único animal capaz de tirar prazer da tortura e morte de membros de sua
própria espécie. Arriscamo-nos a afirmar que parte das pessoas num linchamento
está lá como em uma briga de galo, para satisfação dos instintos mais baixos e
degradantes da humanidade”.
E aí, envergonho-me de
fazer parte dessa raça!
(Alde Maller – 06/05/2014)
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